O lobo dentro do rebanho: um alerta à esquerda brasileira e latino-americana em geral
- Boaventura de Sousa Santos
- 2 de fev.
- 3 min de leitura
Por: Boaventura de Sousa Santos
Muito se tem escrito sobre a confusão da esquerda, sobre a sua paralisia face ao avanço da extrema direita, sobre as suas decisões internas que só a enfraquecem, sobre dar um tiro no próprio pé ao destruir aliados e alianças, enfim, sobre a sua falta de alternativa. Este não é o momento para reflexões prolongadas sobre como chegámos aqui e como vamos sair. Mas há decisões urgentes a tomar para demonstrar ao povo latino-americano que a esquerda ainda está viva e está ao lado do povo martirizado pelo custo de vida e sufocado por um sistema financeiro predatório. Este momento chegou e é preciso tomar decisões.
Marco Rubio iniciou uma digressão pelos países da América Latina. Todos o conhecemos. É um líder de origem cubana que fez carreira na política com um único objectivo: destruir a esperança que Fidel Castro trouxe ao povo cubano. Tem a mesma ideia de América Latina que a Doutrina Monroe de 1823: a América Latina é um território sob influência dos EUA e nada pode acontecer lá que ponha em risco os interesses dos Estados Unidos na região. Nessa altura, o inimigo a manter fora da América Latina era a Europa. Dois séculos depois, o inimigo é a China.
A retórica oficial da visita é bem conhecida. Marco Rubio vem explicar aos governos latino-americanos que a política de Trump, embora bombástica, respeita os tratados e a diplomacia e que serão possíveis formas de acomodação com benefícios mútuos desde que sejam respeitadas determinadas regras que, no final, serão as mesmas de sempre.
Mas a realidade é muito diferente. Rubio chega à América Latina com três objetivos. Em primeiro lugar, dividir os países da América Latina, impedindo posições comuns que fortaleçam as negociações como o Big Brother. As tarifas de importação serão o principal instrumento para fragmentar a América Latina. Só a divisão dos países permitirá a diplomacia entre desiguais que propõe.
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, declarou paradigmaticamente que está disposto a discutir “um a um” com os EUA, ou seja, entre iguais. É um desejo nobre, mas será difícil para os países da América Latina alcançá-lo sozinhos, mesmo que todos o desejem.
O segundo objectivo é neutralizar a influência da China no continente. Este é o objectivo mais difícil porque os EUA não têm nada para oferecer que se compare ao que a China “ofereceu” para consolidar os seus desígnios como um império em ascensão.
Em terceiro lugar, Rubio está a iniciar o processo de neutralização (e eventual destruição) dos BRICS+, especialmente em termos financeiros, uma vez que qualquer moeda alternativa ao dólar (em que os bancos centrais confiam cada vez menos para as suas reservas) precipitará o colapso económico dos EUA. Neste terceiro objetivo, o Brasil é o grande alvo.
Não é necessária muita análise geoestratégica para concluir que, quaisquer que sejam as diferenças entre a esquerda, nenhum destes objectivos é conveniente para a esquerda porque, a longo prazo, significará uma maior deterioração no nível de vida de populações já demasiado vulneráveis. A história ensina-nos que quando os países da América Latina ganharam capacidade de manobra ou relativa autonomia em comparação com os Estados Unidos, foi quando conseguiram melhor satisfazer as necessidades das classes sociais mais vulneráveis. A primeira década do século XXI está a demonstrá-lo.
Por isso, a esquerda tem agora a oportunidade de deixar de se confundir e de encontrar o seu “norte”. O seu norte é o inimigo de sempre, que chega agora à pessoa de Marco Rubio. Será o lobo entre o rebanho, ou o lobo em pele de cordeiro. Escolhe a fábula, mas a realidade não engana.
Por esta razão, a esquerda deve deixar o seu governo receber diplomaticamente um governante de outro país, mas deve sair à rua para gritar alto e bom som que nem Trump nem Rubio são bem-vindos no continente. Porque qualquer acordo que satisfaça Rubio será prejudicial para o povo latino-americano. As ruas devem voltar a ser de esquerda e esta é uma oportunidade soberana para as reconquistar. É um objectivo minimalista, mas é por isso que pode ser organizado a curto prazo, pode ser massivo e ter um impacto político a curto e médio prazo.
Devemos lembrar que em países como o Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia há eleições no próximo ano e no Equador este ano. É fundamental não deixar que Rubio se normalize com um amigo político que até fala a nossa língua. A desrubialização da América Latina deveria ser o slogan mais importante. Se a esquerda não der um sinal forte agora que existe, dificilmente o fará quando as pessoas estiverem prontas para ir às urnas depois de um ano de loiraização.
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