Todas as teorias estão sujeitas a ser pervertidas porque todas são elaboradas, explicita ou implicitamente, com o objectivo de ter impacto no mundo da vida, seja porque o pretendem interpretar, seja porque o pretendem transformar. As teorias, por mais esotéricas, têm sempre uma dimensão ou vocação de aplicação extra-teórica, muitas vezes à revelia dos seus autores. Para além disso, a teoria constitui um artefacto poroso e de algum modo incompleto porque sempre aberto à interpretação. A aplicação só constitui perversão quando as teorias são convertidas em doutrina ou ideologia, isto é, num sistema normativo fechado ao serviço de práticas de poder concretas, quer de Estados quer de grupos sociais específicos. Um sistema normativo é fechado quando a liberdade de interpretação é expropriada por um centro de interpretação encarregado de proferir interpretações autorizadas e, consequentemente, de proibir todas as outras possíveis. A perversão decorre de os objectivos pragmáticos (políticos, religiosos ou outros) pretendidos pela ideologia ou doutrina passarem a ser o critério de validação e interpretação da teoria. No caso de práticas de poder estatal, os dois casos mais conhecidos desta perversão no universo político eurocêntrico ocorreram com o liberalismo e o marxismo. Em ambos os casos, e ainda que de modos muito distintos, a teoria foi convertida em doutrina oficial de Estados autodesignados liberais ou marxistas (socialistas ou comunistas). A perversão da teoria ao serviço de ideologias ou doutrinas e práticas de grupos sociais concretos ocorre sempre que tais doutrinas ou ideologias e práticas contradizem frontalmente os propósitos dos autores da teoria. Por vezes a perversão não envolve toda a teoria, mas apenas um dos seus conceitos.
Um exemplo bem conhecido na teoria pós-colonial é o conceito de “essencialismo estratégico” cunhado por Gayatri Spivak. Com este conceito, Spivak procurava caracterizar provocadoramente a desconstrução da historiografia levada a cabo pelo trabalho teórico dos “Subaltern Studies”, um grupo notável de cientistas sociais indianos, a que ela própria pertencia, apostados na revisão da história da India (Guha, 2002; Spivak, 2006). Spivak pretendia mostrar que o essencialismo positivista de muitos estudos deste grupo tinha um objectivo político muito concreto (subverter os códigos de leitura dominantes da sociedade e da história da India) e nesse sentido era estratégico. Aplicado ao conceito de identidade, o conceito de essencialismo estratégico não pretendia significar que certas práticas concretas decorriam naturalmente do conceito de identidade, mas antes que o uso deste conceito podia, em certas circunstâncias, ser necessário como táctica política.
Muito cedo, Spivak apercebeu-se de que o conceito de essencialismo estratégico estava a ser usado como panaceia ou álibi para proselitismos académicos ou outros e, por essa razão, desvinculou-se do conceito. Um conceito que, na sua formulação, visava servir necessidades políticas muito concretas que legitimavam o seu uso nessas circunstâncias concretas e só nelas, fora transformado num álibi para justificar todos os essencialismos identitários – ou o identitarismo. Segundo ela, estava a servir para justificar aqueles que “convertem a identidade na principal agenda de sobrevivência política e cultural” e “ignoram o que há de mais interessante em estar vivo, isto é, existir orientado para o outro” (in Flaganan et al, 2007: 4 e 16-17).
As epistemologias do Sul: críticas e perversões
Um brevíssimo esboço
As epistemologias do Sul por mim propostas em Toward a New Common Sense (Santos, 1995: 506-519; e, por último, Santos, 2018) têm vindo recentemente a ser objecto de várias críticas vindas de quadrantes científico-políticos muito diferentes. Vou referir-me a críticas dignas do nome, não a insultos ou golpes baixos, infelizmente cada vez mais frequentes no mundo académico. Quanto a estes últimos. Menciono, por exemplo, aqueles que escreveram que eu por ser europeu (e, especificamente, português) não tinha legitimidade para propor as epistemologias do Sul. Uma variante desta “crítica” foi a mesma negação de legitimidade pelo facto de eu ser branco. Este tipo de pseudo-crítica veio sobretudo da corrente descolonial latino-americana e foi feita com dupla má-fé. Por um lado, confundia as epistemologias do Sul com a teoria descolonial; por outro lado, era quase sempre feita por brancos descendentes dos colonos europeus que, aliás, eu nunca vira ao nosso lado nas lutas em que participei com os povos indígenas e afro-descendentes em defesa dos seus territórios e das suas culturas. Estas pseudo-críticas, que desqualificam os autores para não terem de confrontar as ideias, são exemplos de um essencialismo nem sequer estratégico, antes mediocremente táctico, para defender a propriedade de uma dada narrativa teórica ou para promover uma carreira académica ou outra.
Antes de continuar a discutir as críticas sérias, convém fazer um brevíssimo resumo do que são as epistemologias do Sul. Advirto à partida que, ao contrário de algum pensamento descolonial, as epistemologias do Sul não são anti-ciência moderna. Apenas defendem que a ciência, sendo um conhecimento válido, não é o único conhecimento válido e, como tal, deve permitir-se dialogar e interagir com outros conhecimentos, os quais designo, em geral, como conhecimentos vernáculos. Por outro lado, as epistemologias do Sul estão tão comprometidas com a busca da verdade como as epistemologias do Norte. Recusam elogios de ignorância que não se pautem pela ignorância esclarecida de Nicolau de Cusa (Santos, 2023), tal como recusam iluminações identitárias religiosas ou seculares, classistas, raciais ou de género, sejam elas propagadas de boa-fé ou de má-fé. Apenas consideram que a busca da verdade tem de ser mais ampla do que a que é possível com recurso às metodologias científicas consagradas no Norte global porque estas reduzem essa busca à que é exigida pela razão instrumental e esta está ao serviço do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado ou subscreve, quando os critica, os pressupostos epistemológicos em que estes assentam.
As epistemologias do Sul referem-se à identificação e à validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado. Denomino o vasto e muito diverso âmbito dessas experiências de Sul “anti-imperial”. Trata-se de um Sul epistémico, não-geográfico, composto por muitos suis epistémicos que têm em comum o facto de serem conhecimentos nascidos em lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado da época moderna, a partir do século XVI. São produzidos onde quer que ocorram essas lutas, tanto no Norte geográfico como no Sul geográfico. O objectivo das epistemologias do Sul é permitir que os grupos sociais oprimidos representem o mundo como seu e nos seus próprios termos, pois apenas desse modo serão capazes de o transformar de acordo com as suas próprias aspirações. É fundamental para as epistemologias do Sul a noção de que o capitalismo não se mantém sem o colonialismo (racismo e outras manifestações de violência colonial) e sem o patriarcado. Não é possível imaginar uma sociedade capitalista não racista e não patriarcal.
As críticas epistemológicas
A primeira crítica é de carácter epistemológico. As epistemologias do Sul, ao procurar validar outros conhecimentos para além do conhecimento científico, abrem as portas ao irracionalismo, ao subjectivismo, ao negacionismo anti-ciência. Tenho respondido a esta crítica em diferentes trabalhos (Santos, 2003; 2007). Muito em resumo, defendo que nenhum sistema de conhecimento resolve toda a ânsia humana de vencer a ignorância. Todos os sistemas de conhecimento têm limites internos e externos. A ciência não me responde à pergunta sobre qual é o sentido da vida ou o que é a felicidade. Se eu quero ir à lua preciso de conhecimento científico, mas se quero conhecer a biodiversidade da floresta preciso de conhecimento indígena, nativo ou camponês. A grande maioria das pessoas e dos grupos sociais conduzem a sua vida com recursos a conhecimentos não científicos. Nos próprios laboratórios científicos circula muito conhecimento artesanal, não científico. Entre o conhecimento científico e o não científico há incompatibilidades, mas também há convergências. As convergências estão na origem das ecologias de saberes entre conhecimentos científicos e não científicos que possibilitam uma compreensão mais ampla do mundo e uma transformação mais prudente da vida em sociedade.
As críticas políticas
A segunda crítica é de carácter político. Muito do conhecimento não-científico é conservador, se não mesmo reaccionário. A sua revalidação pode significar um retrocesso político, justificando formas de pensamento antidemocráticas e hostis ao aprofundamento e ampliação dos direitos humanos, por exemplo, dos direitos humanos das mulheres, das minorias (por vezes maiorias) étnicas, raciais ou religiosas, das diferentes orientações sexuais, etc. A refutação desta crítica reside, em primeiro lugar, no reconhecimento de que todos os sistemas de conhecimento e as respectivas culturas em que emergem têm diferentes versões, umas progressistas e outras reacionárias. Isto é tão verdade da cultura ocidental, como da cultura islâmica, hindu, chinesa ou das culturas indígenas da América Latina e da Oceânia ou do Norte da Europa. Em segundo lugar, as epistemologias do Sul, ao privilegiar os conhecimentos nascidos nas lutas sociais contra a dominação capitalista, colonialista e hétero-patriarcal, posicionam-se do lado dos oprimidos e não dos opressores. Não podem, portanto, confundir-se com perspectivas epistemológicas que, pelo contrário, legitimam esses modos de dominação. A preocupação medular da inquirição das epistemologias do Sul é a vigilância epistémica constante sobre saber de que lado estão nas lutas concretas, uma vez que os oprimidos são por vezes também opressores, tal como os opressores são também oprimidos.
As críticas teóricas
A terceira crítica é teórica. As epistemologias do Sul pertencem à tradição do pensamento crítico. Nesta tradição, o marxismo é a teoria mais consistente da crítica ao capitalismo e da formulação da alternativa socialista. Não vou entrar aqui na riquíssima história dos debates internos no campo marxista dos últimos setenta anos. Os debates mais estimulantes foram os que confrontaram as análises de Marx, muito vinculadas à realidade europeia (sobretudo inglesa) da segunda metade do século XIX, com realidades não europeias muito diferentes das europeias e que suscitavam mais atenção a partir dos movimentos anti-coloniais. Nesse debates devemos salientar, entre muitos outros, W. E .W. Du Bois nos EUA, a partir da experiência do “problema do negro”; José Carlos Mariategui e, mais tarde, Anibal Quijano e Enrique Dussel, perante a realidade latino-americana e, sobretudo no caso de Mariategui, especificamente perante o “problema do índio”; Antonio Gramsci, confrontado com uma Europa que pouco tinha a ver com a Europa desenvolvida, o “problema do Mezzogiorno” italiano; Kwame Nkrumah, Leopold Senghor e Julius Nyerere centrados na luta anti-colonial em África; Aimé Cesaire, Frantz Fanon e Walter Rodney, pensando o marxismo a partir da realidade caribenha, mas estendendo o seu interesse a África.
O Fórum Social Mundial realizado pela primeira vez em 2001 em Porto Alegre (Brasil), e com encontros regulares a partir de então em vários países até 2016, veio revelar a imensa diversidade mundial dos movimentos sociais, dos processos de luta e seus protagonistas, das narrativas e repertórios da resistência e das agendas políticas. Para muitos intelectuais-activistas envolvidos nesse processo, como eu próprio, tornou-se claro que o marxismo, sobretudo o que se veio a designar como marxismo ocidental, apesar da sua crítica radical ao capitalismo europeu, partilhava muitos dos pressupostos filosóficos da modernidade ocidental (racionalismo pragmático, concepção de natureza e de desenvolvimento infinito, ainda que descontínuo, das forças produtivas, etc.). Por outro lado, o marxismo, com a ressalva da versão chinesa, atribuía o protagonismo exclusivo da luta de classes ao proletariado, ao passo que no FSM mostravam a sua capacidade de luta outros grupos sociais anteriormente negligenciados ou mesmo invisibilizados pelo marxismo (povos indígenas, povos afro-descendentes, camponeses sem terra, mulheres, grupos LGBTI, movimentos ecologistas, movimentos da economia solidária, movimentos religiosos ligados à teologia da libertação, etc.). O marxismo revelava-se como uma teoria eurocêntrica. Se alguns intelectuais-activistas nunca tinham sido marxistas, outros abandonaram-no e outros ainda, entre os quais me incluo, continuaram a considerar-se marxistas, mas acharam que era urgente refundar o marxismo com o propósito de o extricar do seu eurocentrismo. Para estes últimos, tratou-se de descolonizar o marxismo. Este movimento centrava-se muitas vezes em novas leituras dos textos publicados de Marx ou na análise de novos textos deixados inéditos por Marx, escritos depois de 1867 (cerca de 30.000 páginas), o que Theodor Shanin designou por Marx tardio (1984).
As epistemologias do Sul são uma das manifestações desse movimento. Apercebi-me de que a primeira transformação tinha de ser epistemológica. O que o FSM tinha mostrado com mais evidência era a diversidade epistemológica do mundo, a imensa variedade de conhecimentos – científicos, populares, vernáculos, ancestrais, religiosos, profanos, camponeses, indígenas, feministas, quilombolas, ciganos – todos nascidos ou usados nas lutas sociais em que os movimentos sociais estavam envolvidos. Ao cunhar o termo epistemologias do Sul, eu tinha consciência de não estar a inventar nada de novo. Tratava-se apenas de ampliar o significado de práticas e concepções epistemológicas, algumas ancestrais, que um certo positivismo científico, a que o marxismo ocidental não estivera imune, invisibilizara, desconhecera ou rejeitara. Portanto, o Sul das epistemologias do Sul é epistémico, e tanto pode estar presente nas lutas do Sul geográfico como nas lutas do Norte geográfico (basta ter em conta as lutas das comunidades imigrantes na Europa). O conceito de luta social contra a dominação passou a ser essencial porque nas lutas era visível a combinação, ou mesmo fusão, de diferentes sistemas de conhecimento. Por exemplo, nas lutas contra o uso de agrotóxicos combinavam-se conhecimentos científicos (químicos, agronómicos) com conhecimentos dos camponeses, indígenas e quilombolas. Designei esse processo de combinação e transformações recíprocas de conhecimentos como ecologias de saberes e mostrei que, para potenciar ao máximo essas articulações e promover o enriquecimento mútuo de saberes, era necessário muitas vezes recorrer à tradução intercultural (Santos, 2018).
Uma vez enfrentada a questão epistémica e dada centralidade ao conceito de luta, era necessário revisitar o conceito de dominação. O marxismo definira a dominação capitalista como exploração do trabalho livre, embora a acumulação originária (e permanente, acrescentaria Rosa Luxemburgo e, mais tarde, David Harvey) exigisse a expropriação violenta da terra e dos recursos ditos naturais. A luta contra a dominação teria de ser levada a cabo pelos que eram objecto dessa exploração, uma vez conscientes dela, ou seja, o operariado com consciência de classe. Ora, no início do milénio, dez anos depois do fim do socialismo soviético, com a crise da social-democracia europeia, o ataque violento do neoliberalismo aos direitos dos trabalhadores e às organizações sindicais, o fim (provisório?) do socialismo como horizonte realista de emancipação ou libertação, as transformações da composição e natureza do trabalho assalariado causadas pela globalização neoliberal e pela revolução das tecnologias de informação, era difícil insistir no protagonismo exclusivo do operariado na libertação contra a dominação. O mundo dos explorados e oprimidos tinha-se expandido muito.
No fundo, era a própria natureza da dominação que se tinha transformado, pelo menos em parte, e essas transformações tinham-se tornado mais visíveis em face dos grupos sociais emergentes nas lutas contra ela. Povos indígenas e afro-descendentes, roma, camponeses sem terra, mulheres, jovens, grupos portadores de deficiência (à luz dos critérios dominantes de eficiência), populações sem abrigo, LGBTIQ+, ecologistas pacifistas, etc. Uma reflexão profunda, inspirada no activismo com movimentos sociais no âmbito do FSM e nos trabalhos de feministas marxistas e de marxistas negros, levou-me à conclusão de que a dominação moderna capitalista eurocêntrica assenta em três pilares principais: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado (entendido depois como heteropatriarcado). A exploração e expropriação capitalistas mantinham a sua centralidade, mas a sua concretização não era possível sem as duas outras dominações. Eram elas que, com base em concepções e práticas racistas e sexistas anteriores ao capitalismo, mas reconfiguradas por ele, criavam corpos racializados e sexualizados, cujo trabalho era sobre-explorado ou não pago. Sem estes dois tipos de trabalho produtivo o capitalismo não poderia funcionar. Por outras palavras, não seria possível imaginar uma sociedade capitalista que não fosse sexista e colonialista. Assim sendo, o capitalismo assentava em três dominações, e não numa só, e a luta contra uma delas teria de envolver as outras duas para poder ter êxito ou para não conduzir a efeitos perversos (por exemplo, melhorar marginalmente uma dimensão da dominação, agravando as outras duas).
Para esta transformação foi necessário reconceptualizar o patriarcado e o colonialismo. Mais uma vez, não era preciso inventar nada, era apenas necessário ler com outros olhos (outras lentes teóricas) os textos de muitos grandes intelectuais-activistas do passado e contemporâneos. Para o caso do patriarcado, o trabalho de Silvia Federici (2004, 2012), de Nancy Fraser (2020) e Cavallero e Gago (2021) foram fundamentais. Para o caso do colonialismo, servi-me das profundas reflexões de Kwame Nkrumah (1964, 1965), Frantz Fanon (1952, 1961) de Walter Rodney (1973). Com as independências políticas dos século XIX e XX tinha (quase) terminado uma forma de colonialismo, o colonialismo histórico, caracterizado pela ocupação territorial por parte de uma potência estrangeira, mas o colonialismo continuara sob outras formas : o racismo, a expulsão dos camponeses dos seus territórios ancestrais, o extractivismo mineiro e a contaminação dos eco-sistemas, o trabalho análogo ao trabalho escravo, a asfixia das famílias e dos pequenos produtores pelo capital financeiro, o controle das reservas em bancos dos países colonizadores, o comércio desigual das matérias-primas, a tutela militar, o afogamento e deportação dos imigrantes, a brutalidade policial e o ethnic profiling.
A crítica das epistemologias do Sul por parte de marxistas que considero ortodoxos tem vindo a aumentar. São três as críticas principais. No plano epistémico, a teoria marxista assenta num epistemologia que atribui ao conhecimento científico marxista o monopólio do conhecimento rigoroso. Aliás, a ciência burguesa carece do rigor da ciência marxista por estar ao serviço da classe capitalista. Pelo contrário, a ciência marxista está ao serviço da classe operária, que representa os interesses daquilo que Hegel designava como a “classe universal”. Ao questionarem o monopólio do conhecimento rigoroso por parte da ciência, as epistemologias do Sul abrem as portas ao irracionalismo e à cacofonia. A ecologia de saberes e a tradução intercultural são procedimentos considerados estranhos à cultura teórica marxista e causadores de confusão e falta de rigor. No entanto, se analisarmos as lutas sociais concretas de grandes marxistas, de Lenine a Rosa Luxemburgo e de Kwame Nkrumah e Aimé Cesaire a Amilcar Cabral, verificamos que recorreram sempre a outros conhecimentos e os articularam com a teoria marxista.
A segunda crítica reside na distinção entre modo de produção e formação social. O marxismo é uma teoria sobre o modo de produção capitalista. Os conceitos centrais são o conceito de exploração do trabalho assalariado e o conceito de classe. Raça e género, e os respectivos preconceitos e discriminações que provocam, existem ao nível das formações sociais concretas e contribuem para reforçar os níveis de exploração e aprofundar as oposições (e divisões) de classe, mas não podem ser equiparadas ao conceito de classe nem contribuir decisivamente para a transformação socialista da sociedade, uma vez que esta será sempre o produto da luta de classes. Esta linha de raciocínio teórico foi desde cedo utilizada para defender que as discriminações raciais e de género desapareceriam quando a luta do operariado finalmente vencesse e a sociedade socialista chegasse.
Não pretendo entrar aqui nos detalhes técnicos da refutação desta critica teórica. Para as epistemologias do Sul, o conceito central é o de luta contra a dominação moderna e esta, quando vista da experiência histórica dos povos que foram sujeitos ao colonialismo europeu e analisada da perspectiva do Sul epistémico, foi sempre uma dominação multifacetada e, aliás, começou pela dominação ontológica, a dominação de corpos pelo que eram (e não pelo que faziam ou não faziam) e, por essa razão, a apropriação e a violência sobre os corpos (incluindo o extermínio) existiram sempre ao lado da sobre-exploração. E isso não mudou qualitativamente com as independências políticas. Tal como no corpo racializado, a dominação do corpo sexualizado começou pela dominação ontológica. Foi com base nisso que a mulher foi objecto de apropriação e violência e que se criaram as condições para sobre-exploração através do conceito de trabalho não-produtivo sem o qual não seria possível a extracção da mais valia do trabalho produtivo. Também neste caso, as conquistas dos movimentos feministas, apesar de muito importantes para minorar a discriminação sexual, não alteraram a estrutura de base da exploração capitalista. Por estas razões, do ponto de vista das epistemologias do Sul, a luta anticapitalista, sendo uma luta de classes, tem de ser também e necessariamente uma luta anticolonialista e anti-patriarcal. Se classe, raça e género estão inextricavelmente ligadas nas lutas sociais concretas quando se trata do futuro pós-capitalista do mundo, porque se insiste que o estatuto dos três conceitos não está no mesmo patamar teórico? A luta de classes deixa de o ser por ser organizada de modo a ser também uma luta contra o racismo e o heteropatriarcado? É talvez menos uma questão teórica do que uma questão para teóricos. É certamente uma questão central para os activistas políticos.
A terceira crítica dos marxistas ortodoxos é política. O marxismo visa a transformação da sociedade no sentido do socialismo e do comunismo. Estes dois últimos conceitos aparecem raramente nas narrativas das lutas sociais concretas, sobretudo fora do mundo político eurocêntrico. Esta é talvez a maior divergência entre o marxismo e as epistemologias do Sul. É sabido que Marx não dedicou muito do seu tempo a descrever a futura sociedade socialista ou comunista. O que ele fez e de modo decisivo foi mostrar que o capitalismo não era o fim da história e que os humanos tinham direito a uma sociedade melhor e mais justa. Esta é também a ideia central das epistemologias do Sul. A razão pela qual muitos movimentos sociais do Sul global não formulam o projecto da sociedade futura em termos de socialismo ou comunismo tem a ver com muitos factores. São dois conceitos fundamentais do pensamento crítico eurocêntrico e, de algum modo, foram com o tempo sendo objecto das mesmas críticas que fora da Europa eram feitas aos pressupostos filosóficos e ideológicos do pensamento crítico eurocêntrico em geral. Além disso, as designações “socialismo” e “comunismo” ficaram muito ligadas aos partidos socialistas e comunistas que surgiram na Europa no final do século XIX, início do século XX, e que depois foram fundados noutros continentes à medida que as lutas sociais o permitiam.
As ideias centrais desses partidos foram muitas vezes as mesmas que presidiam aos partidos europeus, sobretudo no período áureo das internacionais operárias. Ora os contextos sociais, económicos, políticos, culturais e históricos eram muito distintos dos que prevaleciam na Europa industrializada e colonialista de então. Esta descoincidência teve por vezes consequências graves nas práticas concretas desses partidos porque os levou a invisibilizar, desvalorizar ou mesmo reprimir muitas práticas de resistência e de luta apenas porque não coincidiam com o receituário socialista ou comunista europeu. Embora seja uma experiência pessoal e não valha mais do que isso, recordo-me de conversas com líderes indígenas do Equador em luta pelos seus territórios e pela sua cultura em que estes se declaravam indignados pelo carácter “anti-índio e racista” do partido socialista do Equador. Infelizmente, durante décadas não houve muitos políticos marxistas a seguir o exemplo de José Carlos Mariateguei na América Latina.
Para as epistemologias do Sul, a luta contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado é uma luta contra ideias e práticas de origem europeia, mas que, sobretudo depois das independências políticas, foram objeto de processos de hibridização e crioulização em que se combinaram ideias europeias com ideias não europeias, do mesmo modo que as burguesias internacionais se articulavam com burguesias nacionais emergentes. Do mesmo modo, as ideias de uma sociedade futura mais justa foram sofrendo metamorfoses várias devido aos mesmos processos de hibridização e de crioulização, neste caso ocorrendo nas lutas das classes populares e dos povos oprimidos.
Por exemplo, o protagonismo dos movimentos indígenas na primeira década do milénio na América Latina levou a que a sociedade futura fosse nomeada segundo conceitos das respectivas línguas indígenas, nomeadamente os conceitos de Sumak kawsay (quéchua) ou Suma qamana (aymara), em tradução aproximada, buen vivir. Não se trata de conceitos equivalentes a socialismo ou comunismo (bem pelo contrário, no que diz respeito ao conceito subjacente de natureza), mas expressam a mesma ideia da possibilidade de uma sociedade pós-capitalista, pós-colonialista e pós-patriarcal. Nalguns países, as tensões entre concepções eurocêntricas e não eurocêntricas de uma sociedade melhor a que os povos têm direito e pela qual merece a pena lutar foram particularmente intensas. Basta ter em mente as tensões entre Jawaharlal Nehru y Mahatma Gandhi sobre a natureza da independência da India (1947). Socialismo e comunismo, tal como Sumak Kawsay e suma qamana e muitos outros termos em diferentes culturas (swaraj e swadeshi em Gandhi), são outras tantas expressões da mesma aspiração de libertação por parte dos povos oprimidos, dominados e explorados. A tradução intercultural entre eles é uma condição necessária para a articulação de lutas transnacionais contra a dominação contemporânea.
As perversões: pensamento não eurocêntrico reaccionário
Como referi no início, fala-se de perversão quando uma dada teoria é usada para justificar meios ou fins de acção que contradizem frontalmente os que presidiram à formulação da teoria. No caso das epistemologias do Sul, duas perversões adquiriram alguma notoriedade. Por causa delas não pretendo seguir a opção de Spivak, desvinculando-me das epistemologias do Sul. Prefiro denunciar as perversões. A primeira perversão reside em recorrer às epistemologias do Sul para legitimar sistemas de pensamento de origem não europeia, anteriores ou contrários à ciência moderna e à filosofia ocidental, com o objectivo de promover políticas conservadoras, capitalistas, racistas e sexistas. Tais sistemas de pensamento reivindicam uma originalidade e uma autenticidade superiores à ciência moderna, uma consonância com filosofias autóctones que foram desprezadas pelo colonialismo europeu e atribuem-se frequentemente uma aura religiosa que os torna ainda mais irrefutáveis e mais perigoso o seu questionamento. Exemplos destacados destes sistemas de pensamento são certas correntes do islamismo político e do hinduísmo político que detêm hoje grande protagonismo em alguns países no Médio Oriente e na India.
A perversão no recurso às epistemologias do Sul para legitimar estes sistemas de pensamento ocorre a diferentes níveis. Em primeiro lugar, as políticas postas em prática por estes sistemas de pensamento não são anti-capitalistas (por vezes, são entusiasticamente capitalistas), ao contrário do que propõem as epistemologias do Sul. São também colonialistas e patriarcais, com manifestações ainda mais violentas que as próprias da modernidade eurocêntrica, legitimando as suas posições como expressões da resistência contra “discursos ocidentais”. Este argumento é usado para, por exemplo, reprimir os movimentos feministas islâmicos e hindus que, a partir das suas próprias culturas (e não dos “discursos ocidentais”), lutam pelo fim da discriminação sexual e pela libertação das mulheres. Curiosamente, o capitalismo, apesar de tão ocidental quanto o colonialismo moderno, não é considerado como contrário ao “pensamento ancestral”. Neste sentido, o sistema de pensamento reaccionário é tão moderno quanto o sistema de pensamento ocidental e o seu “essencialismo estratégico” peca da mesma perversão acima denunciada por Spivak.
Em segundo lugar, o pensamento reaccionário é formulado com uma rigidez ideológica que contraria a ideia fundamental das epistemologias do Sul, segundo a qual as diferentes culturas e sistemas de pensamento e de conhecimento têm grande diversidade interna. Acresce que essa rigidez ideológica confere ao pensamento reaccionário um monopólio que inviabiliza qualquer diálogo intercultural, tradução intercultural ou ecologia de saberes. A um nível epistémico mais profundo, a perversão das epistemologias do Sul consiste em que para estas todos os sistemas de pensamento e de conhecimento são incompletos e, por essa razão, só podem contribuir para as lutas de libertação contra a dominação na medida em que se articularem criativamente com outros sistemas de pensamento e de conhecimento.
As perversões: o identitarismo
A outra perversão das epistemologias do Sul reside no identitarismo, definido nos termos acima mencionados. Esta perversão é particularmente gravosa para as epistemologias do Sul porque, como vimos, as epistemologias do Sul foram criticadas pelo pensamento marxista por conceber o colonialismo e o patriarcado como duas das principais dominações modernas a par do capitalismo. E sem dúvida que as epistemologias do Sul contribuíram de modo decisivo para ampliar a voz e o significado transformador dos movimentos feministas e anti-racistas. Mas, como vimos atrás, da perspectiva das epistemologias do Sul, as lutas contra o colonialismo e o patriarcado só têm um sentido progressista de luta contra a dominação da era moderna na medida em que se articularem com a luta anti-capitalista. Separadas da luta anticapitalista, essas lutas serão facilmente cooptadas pelas forças políticas conservadoras e capitalistas interessadas em dividir a resistência social. Essa divisão cria falsos inimigos e invisibiliza o verdadeiro inimigo das classes populares, a tríade capitalismo-colonialismo-patriarcado. A partir do momento em que as lutas contra o colonialismo e o patriarcado (luta anti-racial e anti-sexista) se separarem da luta contra o capitalismo (luta de classes) passarão a ser facilmente cooptáveis pelo sistema de dominação no seu conjunto. E, no plano político, passarão a ser instrumentalizáveis pelas forças políticas mais conservadoras, inclusivamente as forças de extrema-direita.
Dada a natureza dos movimentos sociais que protagonizaram essas lutas, talvez fosse de prever que a perversão viesse a ocorrer. Os movimentos sociais, ao contrário dos partidos políticos, centram-se numa dimensão específica da luta social, seja ela sindical, ecologista, anti-racista ou anti-sexista. Tendem, portanto, a considerar essa dimensão como a mais importante, ao mesmo tempo que desenvolvem narrativas, repertórios e formas organizativas de luta que se adequam a essa dimensão da luta, mas não a outras dimensões. Por sua vez, as entidades nacionais e internacionais que financiam esses movimentos contribuem para vincar ainda mais essa concentração numa só dimensão da dominação. Os termos de referência que condicionam os financiamentos são esclarecedores a esse respeito.
Mas o identitarismo significa duas outras perversões. A primeira é que as lutas sociais, quando isoladas, podem contribuir para aprofundar a dominação global, em vez de a atenuar. Uma melhoria nas relações capital-trabalho pode ter consequências adversas para as relações raciais ou patriarcais. E o mesmo pode suceder com vitórias isoladas em qualquer destas relações. A verdadeira luta está na articulação das lutas. Isto não significa que as diferentes lutas sociais não tenham especificidades que as distinguem entre si. Tenho proposto uma distinção entre importância e urgência nas lutas sociais. O facto de todas as lutas serem importantes não significa que todas sejam igualmente urgentes. Significa apenas que as lutas mais urgentes num dado contexto social ou histórico devem ser organizadas de modo a contabilizar as outras dimensões da dominação. Isto implica transformações nas narrativas, nos repertórios e nas formas organizativas das lutas. Por mais urgente que seja a luta anti-racial ou anti-patriarcal num dado contexto, nunca deve perder de vista que, para ter êxito, tem de ser organizada tendo em conta que é também uma luta de classes.
Esta perversão não tem escapado a alguns movimentos feministas no Norte global. Na roundtable já referida, as Guerrilla Girls declaram: “Somos ‘identitárias’? Bem, continuamos a achar que a perspetiva feminista é um ótimo ponto de partida para criticar a política e a cultura. Mas não gostamos de ser apanhadas em guerras que colocam uma pensadora feminista contra a outra. O que funciona para um tempo e lugar pode não funcionar para outro. Acreditamos que há muitas feministas e feminismos diferentes, e apoiamos a maioria deles!” (Flanagan et al 2007:18). E Jennifer Gonzalez salienta: “Entendo que a arte activista feminista tem como objectivo a longo prazo a crítica e o desmantelamento dos sistemas patriarcais de poder. As formas mais progressistas de feminismo reconhecem que este objectivo inclui necessariamente uma crítica ao racismo e à dominação de classe através dos quais o patriarcado opera frequentemente. Por esta razão, não acredito que a arte activista feminista possa ou deva ser descrita como uma prática cultural ‘identitária’ que se centra simplesmente, por exemplo, na categoria “mulheres” ou no conceito de ‘género’. Em vez disso, deve ser reconhecida como um conjunto de compromissos críticos com sistemas de poder que são opressivos para uma grande variedade de pessoas” (Flanagan et al, 2007: 19).
A perversão da separação isolacionista das lutas tem ainda outra dimensão: os critérios pelos quais se define o êxito das lutas sociais. Os financiadores dos movimentos sociais que separam a luta feminista ou anti-racial da luta de classes são pródigos em oferecer menus de pequenas vitórias de curto prazo, para justificar a continuação dos financiamentos.
A segunda perversão identitarista é que a luta identitária, uma vez separada da luta de classes, torna possível que certas versões da luta se globalizem e invisibilizem ou até mesmo descredibilizem outras lutas contra a mesma dimensão da dominação, mas em contextos socio-histórico-culturais diferentes. Isto é particularmente grave no caso do feminismo. Certas correntes do feminismo ocidental branco e de classe média, que respondem a contextos específicos do patriarcado no Norte global, têm vindo a impor-se globalmente graças ao financiamento das organizações não-governamentais ou para-governamentais que as privilegiam. As mulheres negras, indígenas e empobrecidas do Sul epistémico global resistem muitas vezes a essa imposição (ou procuram sub-repticiamente contorná-la) porque têm outras agendas e narrativas de luta enraizadas no seu contexto socio-histórico e na sua cultura contra a dominação patriarcal, colonialista e capitalista. As fracturas no movimento feminista decorrem em grande medida desta nova dimensão do colonialismo eurocêntrico, agora com a mal-disfarçada pretensão de dominar a narrativa feminista a nível global.
Talvez a maior perversão das epistemologias do Sul por parte do identitarismo resida em aprisionar os actores sociais (pessoas e grupos sociais) numa só identidade, conferindo a esta a exclusividade na definição da presença social desses actores e na legitimidade da sua luta contra a dominação. As pessoas e os grupos sociais têm diferentes identidades, as identidades são porosas, evoluem e são mobilizadas segundo os contextos e as oportunidades para acções colectivas que, pelo menos, atenuem a dominação e melhorem as suas condições de vida. Em tais acções colectivas contra a dominação, o que distingue os actores sociais é tão importante quanto o que os une. A partir do reconhecimento da diversidade, é na união que está o projecto da casa comum.
A casa comum é o projecto de uma sociedade pós-abissal, em que ser plenamente humano (sociabilidade metropolitana) não seja um privilégio injusto construído com base na sujeição de outros á condição de sub-humanidade (sociabilidade colonial das populações sem direitos, sexualizadas e racializadas). Tal projecto não é possível sem se reconhecer que, pese embora as diferenças, a orientação para os outros de que fala Spivak é a condição necessária para construir humanidade, a humanidade da vida humana e da vida não-humana. No mesmo sentido, Ndlovu-Gastsheni pergunta-se se o espectro da política identitária tóxica não apontará para a distopia de um mundo sem os outros (2018).
Inconclusão
As epistemologias do Sul são um projecto epistémico-político colectivo em curso, cujos principais protagonistas não escrevem livros, não circulam no mundo académico, nem consomem o seu tempo discutindo as questões que tanto apaixonam os intelectuais. Dar de comer aos filhos, defender-se das violências, das expropriações e das arbitrariedades, aturar discursos filantrópicos para receber migalhas, migrar para fugir à guerra, à fome ou à hostilidade climática, enfim, lutar diariamente para que o dia seguinte não seja o último, são cada vez mais as grandes prioridades das grandes massas de população do mundo. Mas nem por isso as epistemologias do Sul deixam de ser o testemunho da sua resistência e da sua luta.
Para o intelectual-activista que pretende continuar a aprender com eles e elas e ampliar, por via da teoria, o significado da luta deles e delas e promover a que mais gente se junte a essa luta, a auto-reflexividade deve ser permanente e a teoria deve ser sempre considerada em aberto. No momento em que escrevo três questões permanecem aberto e sangram na minha razão quente.
Primeira questão. Em face da crescente agressividade do capitalismo e da eventualidade de uma terceira guerra mundial, estão no mesmo nível teórico os três principais modos de dominação moderna – capitalismo, colonialismo e patriarcado – ou as dominações colonialista e patriarcal são satélites da dominação principal, o capitalismo? Com a crescente agressividade e pulsão destrutiva do capitalismo – em que a luta de classes cada vez mais se manifesta como luta de minorias enriquecidas contra maiorias empobrecidas – a luta anti-capitalista torna-se mais urgente. Se durante muito tempo a luta de classes combinar a urgência com a importância, deve a teoria mudar? Pode mudar com referência a um certo contexto socio-histórico e não com referência a outro? Para as epistemologias do Sul a teoria vai com as lutas, não à frente das lutas.
Segunda questão. As epistemologias do Sul, como todo o pensamento crítico, assentam no binarismo entre opressores e oprimidos, entre dominadores e dominados, e com base nele definem as contradições sociais e a linha abissal como características fundamentais da modernidade ocidental. Reconhecem, no entanto, que os oprimidos são muitas vezes também opressores, tal como os opressores são também oprimidos. Como definir o patamar em que a diferença quantitativa se torna qualitativa? Em que alguém é considerado opressor porque é mais opressor que oprimido ou é considerado oprimido porque é mais oprimido que opressor? Enquanto houver opressores e oprimidos em resultado de modos de dominação que separam os seres humanos em seres considerados plenamente humanos e seres considerados sub-humanos (a linha abissal), a casa comum será um projecto que só se concretizará quando a linha abissal terminar.
Terceira questão. As epistemologias do Sul são animadas pelo projecto de inclusão verdeiramente inclusivo, um projecto que não seja, ele próprio, excludente, isto é, um projecto de inclusão segundo critérios de inclusão impostos pelos já incluídos. Só assim é possível ampliar o presente e lutar para deslocar a linha abissal de modo a que sociabilidade metropolitana avance e a sociabilidade colonial retroceda. A ampliação do presente é concebida como ampliação do direito à vida. Na tradição do pensamento crítico eurocêntrico o direito à vida restringe-se à vida humana. Para as epistemologias do Sul, a vida a ser incluída é vida humana e a vida não humana, já que a sobrevivência da primeira não é possível sem a sobrevivência da segunda. Como estender à natureza conceitos inventados para se aplicar exclusivamente à vida humana, como, por exemplo, democracia, direitos humanos, direito penal, presunção de inocência, sofrimento, opressão, libertação? Quem mobilizará tais conceitos em nome da natureza? Serão necessários conceitos totalmente diferentes que a própria natureza vá propondo à medida que o conceito actual de natureza for evoluindo para o conceito de Mãe-terra? A casa comum é infinitamente maior do que até agora imaginámos e o projecto de a construir é correspondentemente mais audacioso.
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